sábado, 19 de julho de 2008

Anjo


Sim, essa besta incestuosa e adúltera,
Com seu engenho maligno e dádivas de traição —
Maldito engenho e dádivas malditas
Por seu poder de sedução! — descobriu, pra sua lascívia incontrolável,
A volúpia da minha rainha tão virtuosa — em aparência.
Oh, Hamlet, que queda foi aquela!
De mim — cujo amor ainda mantinha a dignidade
Dos votos feitos em nosso matrimônio –
Rebaixar-se a um canalha, cujos dons naturais
Eram mais que execráveis, comparados com os meus!
Mas, assim como a virtude não se deixa corromper,
Ainda que a luxúria a corteje em forma de anjo,
Também a lascívia, mesmo ligada a um anjo refulgente,
Continua devassa nos lençóis celestes,
E goza na imundície.
Mas, espera! Já sinto o odor do ar matutino;
Devo ser breve; eu dormia, de tarde, em meu jardim,
Como de hábito. Nessa hora de calma e segurança
Teu tio entrou furtivamente, trazendo, num frasco,
O suco da ébona maldita,
E derramou, no pavilhão de meus ouvidos,
A essência morfética
Que é inimiga mortal do sangue humano,
Pois, rápida como o mercúrio, corre através
Das entradas e estradas naturais do corpo;
E, em fração de minuto, talha e coalha
O sangue límpido e saudável,
Como gotas de ácido no leite. Assim aconteceu comigo;
Num segundo minha pele virou crosta leprosa,
Repugnante, e me surgiram escamas purulentas pelo corpo.
Assim, dormindo, pela mão de um irmão, perdi, ao mesmo tempo,
A coroa, a rainha e a vida.
Abatido em plena floração de meus pecados,
Sem confissão, comunhão ou extrema-unção,
Fui enviado para o ajuste final,
Com todas minhas imperfeições pesando na alma.

Shakespeare in 'Hamlet'

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